Vidas seguintes, Abdulrazak Gurnah (cavalo de ferro)

         

   Comprei Vidas seguintes, no café-livraria insensato, em Tomar, lugar onde os livros nos convidam a sentar e a comer qualquer coisa, enquanto os folheamos.

    Não me foi difícil a escolha, até porque logo que Abdulrazak Gurnah recebeu o Prémio Nobel, em 2021, fiquei com vontade de conhecer a sua obra. Segundo li na altura, é o quinto escritor do continente africano a ganhar o Prémio Nobel da Literatura desde a sua criação em 1901. Nasceu em 1948 em Zanzibar, no que viria a ser alguns anos depois a Tanzânia, e no final dos anos 60 chegou a Inglaterra como refugiado.

     Neste romance é evidente a sua ligação a África. Não é do pais que o acolhe e onde reside de que fala, mas da terra onde nasceu. Não sendo o primeiro escritor africano que leio, ao ler Vidas seguintes senti que olhava o mundo numa perspetiva diferente. Que aprendia História enquanto lia um romance. 

    Vidas seguintes começa nos primeiros anos do seculo XX, período em que o colonialismo europeu se impunha de forma absoluta e violenta em África:

    "Os Alemães e os Britânicos e os Franceses e os Belgas e os Portugueses e os Italianos, e quem quer mais que fosse, tinham já feito o seu congresso e desenhado os seus mapas e assinado os seus tratados, portanto esta resistência (a revolta de Abushiri) não aqueceu nem arrefeceu." (pg. 9)

    Os alemães, que são menos frequentemente mencionados ou lembrados como povo colonizador em África, ocupam aqui um papel central:

     “A tenacidade com que estes povos recusavam tornar-se súbditos do império da Deutsch-Ostafrika constituíra uma surpresa para os Alemães (…) As melhores terras foram tomadas à medida que mais colonos alemães chegavam. O regime de trabalho forçado foi alargado para construir estradas e valetas, e fazer avenidas e jardins para lazer dos colonos e em prol do bom nome do Kaiserreich.” (pg. 20 e 21)

     Mas Abdulrazak Gurnah não nos dá uma visão maniqueísta dos povos e da época, reconhecendo aos europeus o facto de terem trazido os seus remédios e a sua higiene, evitando desta forma algumas epidemias e tratando de feridos e doentes. Também em termos de ensino há uma diferença entre uns e outros. O oficial alemão fala na missão civilizadora que os levou a África:

    "Nem sequer sabes o que é a matemática, pois não? Viemos para aqui para vos trazer isso, a matemática e muitas outras coisas boas que sem nós vocês não teriam. (...) É esse o nosso engenhoso plano, que só uma criança não entenderia. Viemos cá para vos civilizar." (pg. 71)

     Ao mesmo tempo, uma jovem que tinha aprendido a ler a escrever, é violentamente agredida pelo tio, com quem vive, que lhe pergunta para que é que "precisa de escrever? Para mandar bilhetes a um chulo?"

        Vidas seguintes acompanha as vidas de Khalifa e Asha, que se casam em 1907, bem como de Amur Biashara e do seu filho, Nassor, comerciantes ricos e pouco escrupulosos, e ainda de Ilyas e a sua irmã Afiya. Ilyas, depois de fugir de casa dos pais e da extrema pobreza em que viviam, é acolhido por alemães e frequenta uma escola da missão, antes de chegar à cidade, e se tornar amigo de Khalifa. No início da I Guerra Mundial, quando se fala do conflito e da violência dos contendores, em particular dos ingleses e alemães, Ilyas defende sempre estes últimos, contudo, um conterrâneo diz-lhe o seguinte:

    "Escuta, só porque um alemão foi gentil para contigo, isso não muda o que por aqui tem acontecido ao longo dos anos (...). Ao longo dos trinta anos de ocupação desta terra, os Alemães mataram tantas pessoas que o país está coberto de caveiras e a terra ensopada em sangue. Não estou a exagerar." (pg. 48)

    Mas, em coerência, Ilyas junta-se à Schutztruppe ou como explica à irmã, é um soldado dos alemães.

    De Ilyas passamos a Hamas, também ele um soldado da Schutztruppe, que é destacado como criado pessoal de um oficial que o protege, porque - sabemos mais tarde - o faz recordar-se do irmão mais novo que perdeu, embora goste do poder que tem sobre ele. No final da guerra e depois de recuperar de um ferimento que lhe foi violenta e gratuitamente infligido por um outro oficial alemão, Hamas vai para a cidade onde conhece Khalifa, que o protege e lhe dá guarida. De Ilyas nada se sabe. Há como que uma substituição de um pelo outro.

    Hamas e Afiya apaixonam-se e casam-se, diferindo dos outros casamentos anteriores, como  o de Khalifa e Asha, que foram combinados ou de conveniência e desprovido de sentimentos. O filho de ambos, a quem é dado o nome do tio, Ilyas, é a vida que se segue. Uma vida já com horizontes distintos. Durante de a II Guerra, apesar da vontade de se alistar no exército britânico, terá de aguardar pela morte de Khalifa para o fazer ("Já não basta que o teu pai e o teu tio tenham sido palermas o suficiente para arriscar a vida por esses belicistas vaidosos?")

     Sobrevive e depois da independência da Tanzânia, num processo liderado por Julius Nyerere, Ilyas ganha uma bolsa de estudo  da RFA para onde vai estudar. Nem ele, nem os seus pais desistem de tentar saber o que aconteceu ao seu tio, que se alistara no exercito alemão.

    A leitura de Vidas seguintes é viciante e se alguma crítica posso fazer é ao facto de, na última parte, enquanto seguimos Ilyas, a narrativa ganhar uma velocidade e concisão que não acontece nas outras partes. 

    Conheço muito pouco sobre a história da Tanzânia e, enquanto lia Vidas seguintes, senti necessidade de conhecer um pouco mais as referências que ali são feitas, como a revolta dos Maji-Maji contra os alemães, na sequência da imposição para que plantassem algodão, e que deu origem a mais de 250 mil mortes, a história da colonização alemã e depois inglesa e, finalmente, a independência e fusão de Tanganica e Zanzinar, dando origem à Tanzânia. 

   Depois de Vidas seguintes, fiquei com muita curiosidade de ler outros romances de Abdulrazak Gurnah, particularmente o Junto ao mar.

    

                     

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