A Vida Apaixonante de Adriano, Marguerite Yourcenar (editora Ulisseia)

A Vida Apaixonante de Adriano
    Demorei muito tempo a ler este livro. Depois de escrever esta frase, percebo que é verdadeira em mais do que um sentido: demorei muitos anos a decidir-me a lê-lo e demorei muito tempo a ler cada frase, cada página, cada capítulo. Porque é de uma enorme profundidade. Porque as palavras se encaixam na perfeição e nenhuma é supérflua. Porque, apesar do tempo e da distância, reconhecemo-nos em vários momentos. Afinal,mais do que ser um livro sobre a vida, são as memórias de um homem que se sente próximo da morte:

    «Certas frações da minha vida assemelham-se já a salas desguarnecidas de um palácio demasiadamente vasto que um proprietário empobrecido renuncia a ocupar todo.» (pg. 12)

     O livro, escrito como se fosse uma carta de Adriano a seu filho adotivo e futuro imperador, Marco Aurélio, é composto por 6 partes: Animula Vagula Blandula; Varius Multiplex Multiformis; Tellus Stabilita; Saeculum Aurreum, Disciplina Augusta e Patientia.

     Na primeira parte, Adriano fala da sua doença ou melhor da  sua vulnerabilidade, da sua condição humana: «É difícil permanecer imperador na presença de um médico e difícil também conservar a qualidade de homem.»


     Daí parte para começar a contar a sua vida, os amores (o prodígio do amor): «Este jogo misteriosos que vai do amor de um corpo ao amor de uma pessoa pareceu-me suficientemente belo para lhe consagrar uma parte da minha vida.»

    Fala ainda sobre o sono e como o vai abandonando à medida que envelhece e reconhece que a carta que se destinava a informar sobre os progressos do mal de que padecia se tornou a «meditação escrita de um doente que dá audiência às suas recordações.»

    Propõe-se então contar a verdade ao seu filho adotivo, com 17 anos apenas, e confessa que procura instrui-lo, mas também chocá-lo.

     Na segunda parte, Varius Multiplex Multiformis, fala da sua família, do avô, Marulino, e de seus pais, e confessa o pouco respeito que sente pela instituição da família. Antes de regressar ao exército, enquanto permanece em Roma, vai amadurecendo e reconhece que é então que se aceita a si próprio. Quando faz 40 anos, apercebe-se que se morresse então apenas alguns amigos se recordariam dele. Para além da relação que mantém com o imperador, Trajano, que o adotou, é muito próximo da mulher dele, Plotina. Com a morte de Trajano, sucede-lhe como Imperador. Conclui então que «A minha própria vida já não me preocupava: podia novamente pensar no resto dos homens».

    A terceira parte, Tellus stabilita, é dedicada aos primeiros anos enquanto Imperador: «A minha vida reentrara na ordem, mas o império não».

     Regula o regime da escravidão que considera impossível de suprimir. Intervém também sobre a situação das mulheres, concedendo-lhes a liberdade de administrar a fortuna, testar ou herdar e determina que nenhuma rapariga poderá casar-se sem o seu consentimento. Conhecedor dos astros e da astronomia, refere que alguns anos mais tarde a morte iria tornar-se o objeto da sua contemplação constante, bem como o mundo misterioso ao "qual possivelmente a morte dá acesso".

     Saeculum aureum é dedicado ao seu amante Antínoo, desde que se conhecem até à morte deste, por suicídio, de que Adriano se responsabiliza. Passa da felicidade para o inferno: «Nenhuma sombra se perfilava nos meus dias, nem a morte, nem a derrota, nem aquele revés mais subtil que impomos a nós mesmos, nem a idade, que, todavia, acabaria por chegar.» (pg. 140)

     «Não sabia que a dor encerra estranhos labirintos onde eu não tinha acabado de caminhar.» (pg. 155)

    Antínoo torna-se uma obsessão: «A memória da maior parte dos homens é um cemitério abandonado, onde jazem, sem honras, mortos que eles deixaram de amar. Toda a dor prolongada insulta o seu esquecimento.» (pg. 160)
     
    Na quinta parte, Disciplina augusta, para além das recordações de Antínoo, fala da guerra e das conspirações em Roma para o afastar do poder, envolvendo o seu cunhado. O filho que adotara, para lhe suceder, termina por morrer. Encontra então uma solução distinta, mas que o satisfaz, nomeando Antonino como seu sucessor e Marco Aurélio como seu neto.

     A última parte, Patientia, começa com uma carta enviada por Arriano, o que o leva a avaliar positivamente o que fez e o legado que deixa. Adriano sente-se fraco e pede que o matem, em vão. Os dois homens a quem fizera o pedido, optam por se matar. Reconcilia-se então com a espera da morte:

     «A sua aproximação restabelece entre nós uma espécie de estreita cumplicidade: os vivos que me rodeiam, os servidores dedicados, por vezes inoportunos, nunca saberão a que ponto o mundo deixou de nos interessar.» (pg. 219)

     «Contemplemos juntos, um instante ainda, as praias familiares, os objetos que certamente nunca mais veremos… Procuremos entrar na morte de lhos abertos…»


     É desta forma que acaba A Vida Apaixonante de Adriano.

    Fiquei feliz por só o ter lido agora. Se o tivesse lido antes, talvez não voltasse a lê-lo, e, penso que não o teria apreciado da mesma forma. A finalizar, achei muito interessante a leitura dos apontamentos sobre as Memórias de Adriano, que permitem compreender que a perfeição da obra resultou dos anos em que Marguerite Yourcenar pensou, escreveu, pesquisou e trabalhou nela. Quase uma obsessão.    

     Conhecia este livro como as Memórias de Adriano. Descubro que o título, A Vida Apaixonante de Adriano, é desta edição mais antiga e que só depois do 25 de abril, pela mesma editora, foi publicado com o título Memórias de Adriano. A tradução é de Maria Lamas e pareceu-me perfeita. Todas as palavras se ajustam, como se tivesse sido escrito em português, e asseguram a fluência  e a poesia do texto.

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