Pretextos, Helder Macedo (Caminho)
Gosto de ler crónicas, ao ritmo diário ou semanal com que são publicadas. Imagino o cronista na véspera de entregar uma crónica, a pensar sobre o que vai escrever, e pergunto-me se terá vários temas guardados para poder tratar quando lhe falta a imaginação ou o pretexto.
Imagino que nalguns casos – sobretudo nas crónicas diárias – o que parece ser um trabalho ligeiro possa ser mais pesado que muitos trabalhos duros. O branco do papel ou do écran a refletir a falta de ideias e a impor a lembrança do tempo que escasseia para a entregar.
Gosto também de ler compilações de crónicas, embora em muitos casos o tempo dilua o interesse da mesma e até a lembrança das personagens. Mas na maior parte dos casos permitem-nos o regresso até um passado próximo - ou mais distante - e a reminiscência de situações e personagens.
Nunca tinha lido as crónicas que o Autor, Helder Macedo, publicou entre 2006 e 2023 no Jornal de Letras (com exceção de uma) e que publicou com o título Pretextos, porque, como explica na introdução, a maioria são pretextos para falar de escritores e de pintores, celebrar amigos e mortos e partilhar interesses. Estão neste caso as crónicas sobre os participantes da tertúlia que se reunia no Café Gelo no final dos anos 50 do século passado.
Repetidamente nota-se o toque nostálgico da perda de amigos e conhecidos e a premente consciência da finitude: «pois é, ultimamente temos morrido muito» ou «A partir de certa idade morre-se muito.»
Tem a graça de com frequência se tratar do olhar de fora – mas muito conhecedor e próximo - para a nossa realidade e do olhar de dentro para outras realidades.
Muitas crónicas mantêm-se atuais, mesmo tendo decorridos vários anos após a sua publicação:
«Um sistema político democrático deveria permitir – deve exigir – que um governo legítimo possa governar.» ou «(…) quando é que a crítica à política do governo de Israel extravasa numa expressão de anti-semitismo.»
A maior surpresa foi a leitura desta passagem:
«Enquanto em Portugal um ex-primeiro ministro que não desiste de voltar ao poder mal exercido vai fazer a apresentação pública de um livro de inconfidências sexuais previamente anunciadas como sórdidas.»
E não era de Passos Coelho que falava. De quem seria?
Acabo com um excerto da primeira crónica, de 2006, que não resisti a roubar:
«Nunca soube muito bem qual a diferença entre recordar e imaginar. Acho que ninguém sabe. Os processos mentais são semelhantes, são modos equivalentes de lidar com o que não está a acontecer. Tudo aquilo que imagino recordar – ou seja, o que recordo quando imagino o que foi e já não é – não pode nunca ser como era quando aconteceu.
Teve de se tornar também no que sou agora, na pessoa ao mesmo tempo semelhante e diferente em que me fui tornando. Os factos serão os mesmos, mas a perceção dos factos já não é a mesma porque, neste aqui e agora, eu sou aquele que viveu tudo isso e que depois continuou a viver sem nada disso.»
Uma palavra final para a maravilhosa capa e ilustração de Rui Garrido.
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