Que ce soit doux pour les vivants, Lydia Flem (La Librairie du XXI siècle)
Que ce soit doux pour les vivants (título que tento traduzir sem conseguir encontrar as palavras certas: Que seja doce para os vivos? Que seja suave para os sobreviventes? Que seja doce para os que sobrevivem?) foi-me recomendado por uma amiga que passou recentemente pela perda dos pais. Quando me recomendou a leitura, disse-me que o livro lhe foi oferecido por um irmão e que a ajudou no desconforto que sentiu a desmanchar a casa dos pais.
O livro não está traduzido para português – mas justificava-se que fosse – e foi editado 20 anos depois do livro Comment j’ai vidé la maison de mes parents. Conforme escreve Lydia Flem, o título do livro advém de uma frase dita por Maurice Olander, com quem vivia, pouco antes de morrer: é preciso que seja doce para os vivos. Mas considera que ainda não é o tempo para falar dele, para falar deles enquanto casal, por isso a Autora prossegue a escrita do livro anterior e regressa à casa dos pais.
Senti ao ler várias passagens, que punha em palavras o que senti, o que ainda sinto. Mas, ao contrário dela, eu tenho um irmão e uma irmã com quem posso partilhar as minhas recordações, a minha tristeza, a minha perda. Que são as nossas recordações, a nossa tristeza, a nossa perda. Ou no meio do desgosto, podemos até dar por nós a rir. A rirmos em conjunto.
Por onde começar a desmanchar a casa? Ainda não encontrámos a resposta. Talvez por isso nos encontremos por vezes a deambular de divisão em divisão, com uma peça na mão, sem saber o que lhe fazer. Sem conseguir dar continuidade ao ato de a tirar de um armário, de uma prateleira. Por vezes, acabamos o dia sentados, a falar, com a casa mais desarrumada do que quando entrámos. Um simples objeto evoca memórias, pequenas histórias. A leiteira amarela, de tupperware, onde a mãe guardava o leite no frigorífico. Não nos decidimos a deitá-la fora, nem a guardá-la. E permanece à espera que tomemos uma decisão, semana após semana, evocando sempre a recordação dos pequenos-almoços quando éramos pequenos. Numa gaveta descobrimos três caixas onde estão guardadas as cartas, os cartões, os desenhos que cada um de nós fez, desenhou, escreveu, lhes dedicou ao longo da nossa vida. Em dois armários sucedem-se álbuns de fotografias, arranjados, legendados e um índice com indicação dos locais e das datas.
Objetos de geografias distintas, recordações da vida deles e da nossa, e antes deles, dos nossos avós e bisavós. Os quadros do El-Ranys, nosso bisavô – ou trisavô - Synarle, que assinava escrevendo o nome ao contrário. Guardamos as telas porque foi ele que as pintou, um mosqueteiro num pedaço de madeira, uma paisagem e uma natureza morta. Este último quadro, agora restaurado, teve durante anos um pequeno buraco na tela, justamente a meio de uma maçã vermelha, o que permitia que nele enfiássemos um bicho-da-seda, que se contorcia, metade de um lado da tela, a outra metade do outro lado, à espera que os convidados dos nossos pais dessem por ele. Sempre em vão, segundo me recordo.
Como refere a Autora, oferecer consola-nos. Por isso distribuímos no Natal pequenas peças que ornavam as estantes deles e, antes, convocámos os netos para que escolhessem mobiliário, livros ou objetos de casa dos avós, para que levassem um bocadinho deles. Para que eles, os nossos pais, permaneçam na memória de uns e de outros. Outras peças oferecemos a amigos, deles e nossos. Tentamos encontrar a pessoa certa para determinados objetos ou o objeto certo para algumas pessoas.
Os livros intimidam-nos. Estantes cheias no escritório, na sala e numa pequena biblioteca que era do nosso bisavô. Muitos deles lidos por nós durante a nossa juventude. Outros recebidos ou comprados mais tarde. Autores – mais frequentemente autoras – que a nossa mãe descobria e nos ia revelando, como foram os casos de Chimamanda Ngozi Adichie ou David Lodge, cujo livro A vida em surdina a comoveu imensamente, porque se identificou com a surdez crescente e risível.
E o que nós guardamos dos nossos pais, da casa deles? O meu irmão ligou-me e disse que tem conseguido acomodar na casa dele, sem chocar com o que lá tinha ou sem encher demasiado, o que trouxe de casa dos nossos pais. É tudo muito bonito, a mãe tinha muito bom gosto, disse-me. É verdade. Há uma acomodação dos objetos ao nosso espaço. Reconhecemo-los. Já eram nossos antes de o serem. Eu, mais desorganizada, ainda mantenho à entrada de casa quadros encostados à parede, uma peça, esculpida em chifre, de Timor, e uma caixa com discos em vynil. Vou adiando trazer para casa alguns objetos que já decidi (decidimos) seriam para mim. A minha irmã só levará as peças que escolheu para a casa para onde se vai mudar. Até lá guarda tudo num monte que vai crescendo todas as semanas.
Folheio o livro e reparo na quantidade de frases sublinhadas. Quase todas falam na necessidade de continuar e honrar os mortos, assumindo os valores que nos legaram. Acabo roubando uma citação de Freud, na sequência da morte da sua filha Sophie, em janeiro de 1920:
«Nós sabemos que a dor aguda que sentimos logo após uma perda continuará o seu percurso, mas será sempre inconsolável e nós nunca encontraremos substituto. O que quer que se passe, o que quer que façamos, a dor estará sempre lá. E é assim que deve ser. É a única forma de fazer durar um amor que não desejamos abandonar.»
O livro Que ce soit doux pour les vivants permanecerá a meu lado, por enquanto.
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