Autobiografia não escrita de Martha Freud, Teolinda Gersão (Porto Editora)

 

    Tenho a sorte de ter amigos que antecipam os livros que quero ler e mos oferecem. Foi o caso deste, Autobiografia não escrita de Martha Freud, de Teolinda Gersão.

    Confesso que não gosto de Freud, apesar de pouco mais saber sobre o seu trabalho que os lugares-comuns, como o complexo de Édipo, o complexo de castração ou as fases do desenvolvimento de uma criança. Foi seguramente inovador para a época, mas sendo difícil discernir o autor da obra, não consigo dissociá-la do que sei sobre a sua vida. E parte do que sei resultou da leitura de um outro livro, A irmã de Freud, de Goce Smilevski:

    Antes do eclodir da II Guerra Mundial, Sigmund Freud recebe um visto para sair da Áustria, rumo a Londres. Da lista que entregou às autoridades fazem parte a mulher, os filhos, o médico, a família do médico, as criadas e mesmo o cão. Na lista não incluiu as suas irmãs. Sem qualquer razão aparente, apenas o argumento que avança: “Se fosse necessário vocês partirem, eu teria pensado nisso.” Por ironia, as irmãs sobrevivem-lhe alguns meses, mas terminam por morrer, como temiam, em campos de concentração.

     Mas se não gostava de Freud, a leitura da Autobiografia não escrita de Martha Freud,que, como explica a Autora, é um romance sobre personagens históricas, mas não um «romance histórico», veio reforçar a minha opinião.

   Teolinda Gersão parte da correspondência trocada entre Freud e Martha durante os anos que antecederam o casamento e da correspondência que ele escreveu e recebeu de outras pessoas, porque, como refere na nota inicial «é em cartas íntimas, escritas sem filtro, que a personalidade de quem escreve se revela de modo mais intenso e genuíno.». A autora coloca-se no lugar de Martha, então com mais de oitenta anos que se sente a chegar ao fim da vida, e relê a correspondência trocada com o noivo, durante os quatro anos que durou o noivado, e lê, pela primeira vez, a restante correspondência dele.

    Através do pensamento de Martha – que desiste de escrever – ficamos a conhecer melhor Sigmund Freud e a conhecê-la também, primeiro como Martha Bernays e depois como Martha Freud. Como reconhece:

    «Sou apenas figurante numa narrativa alheia, já escrita e considerada perfeita, vigiada dia e noite com uma devoção quase religiosa por uma multidão de pessoas que a assumem, propagam e defendem, sem permitir qualquer alteração, porque crêem nela cegamente, ou a convertem no seu modo de vida. Há portanto uma muralha entre mim e uma história que em parte também é minha.»

    Partilhamos a estupefação e indignação que ela vai sentindo e manifestando ao longo da leitura das cartas que ele lhe escreveu. Não consegui deixar de sentir, contudo, que era pouco credível, porque apesar das mudanças que o mundo viveu, tenho dúvidas que uma mulher nascida no século XIX, e com mais de 80 anos, conseguisse ter uma perspetiva tão distinta daquela que tinha tido quando as tinha recebido. Por exemplo, durante o namoro, ele manifestava-se muito ciumento, quer de amigos, quer da própria família dela, e as respostas de Martha são quase sempre de resignação e aceitação. Mesmo quando não reconhece a crítica e lhe escreve em resposta:

    «Que duendes se intrometem na escrita e com a caneta e a tinta escrevem palavras muito diferentes da minha intenção?» (pg. 136)

    Apesar da indignação que agora transmite, foi aceitando e desculpando-o ao longo do noivado e depois durante os anos que durou o casamento – «o homem a quem dediquei mais de cinco décadas e não posso negar que amei» (pg. 12) – apesar de tudo o que ele lhe exigiu e sobretudo da relação ambígua que ele manteve com a sua irmã, Minna. Na Autobiografia - em pensamento -, Martha interroga-se se esta relação era normal. Interroga-se até se seria normal que a família não se alarmasse e interrogasse sobre o que se passava (pg. 333). Admite que o fizessem em segredo, mas não há qualquer eco desta censura na correspondência.

    Este romance sobre personagens históricas tem, contudo, o mérito de trazer para a ribalta uma mulher praticamente desconhecida e que, através de alguns excertos da correspondência, percebemos que se manteve indomável ao contrário do que ele, então ainda noivo, pretendia.

    E é querendo dar-se a conhecer e a permanecer que Martha, pela escrita de Teolinda Gersão, acaba a sua autobiografia:

    «No que me diz respeito, que as cartas que trocámos sejam publicadas, sem censura nem cortes, traduzidas noutras línguas e dadas a ler a quem quiser. As duas vozes têm igual direito a ser ouvidas, porque uma carta só está completa se soubermos que resposta recebeu.

(…)

    E é com um leve sorriso que ponho um ponto final nesta longa revisitação das nossas vidas. O que quis descobrir foi descoberto, o que de essencial quis dizer foi dito, e não tenho mais nada a acrescentar.»

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