A noite mais sangrenta, João Miguel Almeida (Manuscrito Editora)

  

    Conheço mal a história da primeira República, embora a ache fascinante, sobretudo pelo que se avançou em vários domínios políticos e sociais, deixando outros esquecidos e, como, em tão pouco tempo, o regime entrou em convulsão e evoluiu para um regime autoritário.
    No campo das mulheres, como esquecer a avançadíssima lei do divórcio ou a possibilidade de as mulheres exercerem desde 1918 a “profissão de advogado, ajudante de notário e ajudante de conservador “(sic), reconhecendo-se, contudo, nesse mesmo diploma, a impossibilidade de atribuir às mulheres o direito de voto, como acontecia nas designadas “adiantadas sociedades anglo-saxónicas”, sem que se desse qualquer explicação para esta impossibilidade.
    Mas a instabilidade política foi a marca dominante da primeira República: em menos de 16 anos foram empossados 39 governos e 8 presidentes da República.
    A noite mais sangrenta ocorreu na noite de 19 para 20 de outubro de 1921, 11 anos depois da instauração da República. Nessa noite uma carrinha, que ficou conhecida como a camioneta fantasma, circulou por Lisboa, recolhendo pessoas para as assassinar:
    António Granjo, Machado Santos, Carlos da Maia, Botelho de Vasconcelos e Freitas da Silva. 
    Os três primeiros haviam sido heróis da República. Botelho de Vasconcelos era monárquico e fora apoiante de Sidónio Pais e Freitas da Silva fora chefe de gabinete de Carlos da Maia. Nessa noite, também Cunha Leal, que tentou defender António Granjo, foi ferido com um tiro Uns dias depois, a 24 de outubro, foi morto um motorista, Carlos Gentil, que em voz alta, num café de Lisboa, lamentou as vítimas da noite sangrenta.
    Ao fim de mais de um século continua sem se saber quem foi o mandante destes crimes. João Miguel Almeida considera que este desconhecimento não se deve necessariamente a um acaso ou azar, mas porque “ninguém com poder e responsabilidade no Estado se empenhou em saber quem mandou matar” (pg.150). E também porque ao poder da Primeira República interessou que os crimes daquela noite sangrenta fossem tratados como crimes comuns e “apurar responsabilidades individuais seria remexer nas feridas de uma «guerra civil» entre republicanos, mas também expor cumplicidades com os inimigos não só da República, mas também das instituições liberais, antecipando o derrube da Primeira República por uma ditadura, de início militar, e, depois, alegadamente «nacional» (pg. 152)
    Porventura, avança o autor, os três primeiros - António Granjo, Machado Santos e Carlos da Maia – foram crimes políticos, premeditados, enquanto os outros poderão ter sido ajustes de contas.

    Como conclui João Miguel Almeida, a “principal responsabilidade dos setores antiliberais e antirrepublicanos no que respeita à «Noite sangrenta» não foi tanto a planificação dos crimes, mas o seu aproveitamento para desacreditar a possibilidade de um Estado de Direito num regime liberal – e legitimar um regime político que associava a ordem, não à prática da justiça, mas à manutenção de uma ditadura.” (pg. 156)

    Confesso que senti um arrepio quando li o último parágrafo da introdução de A noite mais sangrenta e pensei na atualidade:
    “Com este livro, quisemos mostrar o que esses crimes nos dizem sobre uma sociedade, uma época; como a partidarização e a precariedade das forças de segurança, a impotência dos tribunais e a promiscuidade entre jornalismo e política podem corroer perigosamente as instituições liberais e abrir caminho para as ditaduras.”

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