Regressos quase perfeitos – memórias da guerra em Angola, Maria José Lobo Antunes (Tinta-da-China)

 

    Regressos quase perfeitos, como explica a Autora, resulta essencialmente da tese de doutoramento em Antropologia que apresentou em 2015. O trabalho de pesquisa assentou em três pilares: as memórias pessoais, as narrativas que circulam na esfera pública e a representação oficial do conflito. Circunscreveu a recolha das memórias pessoais à Companhia de Artilharia 3313, onde o pai fez a comissão como médico, entre 1971 e 1973.  Volvidos quase 50 anos, quando entrevista os militares e participa nos encontros anuais comemorativos, os então jovens militares que integraram aquela Companhia são agora homens com cerca de 60 anos. Às memórias pessoais junta a obra literária do pai, António Lobo Antunes, em particular Cus de Judas, publicado em 1979, e as cartas de guerra que escreveu à mulher. Como refere na parte final, num subcapítulo com o título O Escritor:

    “Às suas palavras é reconhecida a capacidade de representação da experiência comum. Elas estão em todo o lado: na identificação da camioneta que vem do Norte, no cartaz comemorativo que Licíno Macedo traz para a ocasião (“Passámos muito tempo a morrer juntos”), na lápide que foi descerrada no quartel de Torres Novas (“Somos quem fomos”). (pg. 369).

    Regressos quase perfeitos inicia-se com os anos antes da mobilização destes militares. Em 1961, os acontecimentos que deram origem à guerra que iria durar mais de 13 anos, ultrapassaram o écran da televisão, as notícias da rádio e os artigos dos jornais, sendo falados na Igreja e expostas imagens em festinhas da aldeia [“o que os pretos fizeram lá” (pg 69)].  Em 1970, nove anos depois, a guerra ainda prosseguia, já em três palcos distintos, Angola, Guiné e Moçambique. É neste ano que os militares que integrarão esta companhia são mobilizados. Não deixa de nos surpreender o que contam da vida de então, apesar de já termos lido relatos idênticos noutras obras: o militar que era pastor “e nem sabia o que eram faróis e volante! Andava lá a pastorear, em Canas de Santa Maria, no meio do mato, quando ouvia barulho e poeirada na estrada era um carro, isso ele sabia. Mas as peças de um carro, o que é um farol, um farolim, ele não sabia. E depois tornou-se um grande condutor.” (pg. 99) ou aquele que no comboio via pela primeira vez o mar e achava que era um rio grande e com muita espuma.

    Em 1971 embarcam para Angola e vão para o leste, que era considerada uma das piores zonas. Confesso que fico sempre perturbada quando leio ou oiço que os caixões viajavam com os militares e os acompanhavam até aos quartéis onde se iriam instalar. Para além do desconforto na viagem que os levou até ao Luso e depois até Gago Coutinho, do medo - “o receio de ver o inimigo em cada árvore queimada” (pg. 123) - impressionou-os a descoberta da extrema pobreza. As histórias que contam sobre o primeiro ano da comissão, invocam o medo permanente, o facto de muitos estarem crescentemente “cacimbados”, e ainda histórias que oscilam entre a repulsa e o fascínio pelos nativos e seus costumes. Nestes testemunhos, alguns destes militares também falam da colaboração de militares sul-africanos e na utilização de napalm, o que foi na altura (e mesmo depois) desmentido reiteradamente.

    Em 1972 a companhia parte para Malanje, praticamente sem atividade “terrorista” significativa (pg. 226), onde a atividade militar deveria cobrir dois eixos: a ação psicológica de proximidade com as populações e a vigilância das áreas sensíveis.   Lá encontram uma Angola diferente, com plantações a perder de vista: chegava a ser necessário um dia inteiro para percorrer uma fazenda de jipe. (pg. 275).

    Regressam a Portugal – à metrópole – no início de 1973 e têm de retomar a vida que tinha sido interrompida. Voltam diferentes e encontram um país diferente, em que a oposição ao regime é cada vez mais evidente.

    Regressos quase perfeitos, apesar de circunscrever as memórias aos homens de um batalhão, retrata  o país que éramos e a guerra que durante anos nos opôs ao desejo de autodeterminação das nossas colónias. Como refere Maria José Lobo Antunes, nos anos que se seguiram ao 25 de abril, o silêncio caiu pesado sobre o conflito que durante 13 anos recrutara milhares de homens para África (pg. 331) e que se transformou num “tabu existencial e discursivo”.

    Mas esse tabu foi-se dissolvendo com o tempo e, apesar de muitas obras terem sido publicadas e divulgadas nos últimos anos, é preciso continuar a escrever, a ler e a falar deste período da nossa história, para evitar que se perpetuem ideias que ainda persistem de uma colonização benevolente, uma guerra com poucas mortes de ambos os lados, a maioria das quais causadas por acidentes, e a inexistência de discriminação racial.   

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