O Assassino Tímido, Clara Usón (Teodolito)

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    Ao longo da leitura de O Assassino Tímido, fui mudando a minha opinião sobre a história e sobre a escrita, desatada, como a autora a classifica. Gostei muito do início, com que me identifiquei:
    "Fui jovem numa época em que o futuro parecia também jovem e novo, não um mero prolongamento de anos tristes que se arrastavam e cheiravam a pó e reclusão.
    (...) Queríamos divertir-nos, queríamos ser modernos (por oposição aos nosso pais, esses filhos de Franco, a quem chamávamos "velhos"), queríamos experimentar tudo, queríamos ser europeus!, e não, não tínhamos medo nenhum da morte, parecia-nos que a nossa juventude nos tornava invulneráveis, mas a vida supreendeu-nos, alternando os funerais dos nosso amigos com os dos nossos avós."
  Afinal, também vivemos numa ditadura de que nos libertámos pouco tempo antes dos espanhóis. A minha geração - que é a mesma da autora, Clara Usón - viveu igualmente a juventude sob o signo da libertação e do desejo da modernidade e, também do flagelo da droga, mas não creio que tenhamos renegado ou nos envergonhemos da geração dos nossos pais por a entendermos cúmplices do regime. Pelo contrário, sabemos que foi a geração que nos antecedeu que nos libertou e que impediu que vivêssemos a mesma realidade que marcou as suas vidas. Essa diferença não impediu a sensação, na parte inicial, de estar a ler excertos da minha juventude, fossem os sonhos românticos ou as viagens familiares.
     Em simultâneo ou em paralelo, conta a história de Sandra Mozarovski, filha de um diplomata, e jovem atriz de filmes de destape, que é a palavra que corresponde a nudez parcial e que, por acordo com a autora, foi mantida ao longo do livro. Descreve os vários filmes em que a Sandra entrou e a experiência dela própria quando foi ver um filme picante, a Perpignan, com catorze anos. Por cá quem não se lembra ou não ouviu falar do furor que fez em Portugal a exibição de O último tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, no verão de 1974, com filas à porta do cinema São Jorge? 
    Entre as cenas de destape conta-nos a história do suicídio de dois jovens em Itália em 1975, que encontra numa das revistas que publica uma entrevista à Sandra. E no meio dos filmes, das entrevistas e reportagens sobre a Sandra, e as recordações da sua juventude, convoca Pavese, Tchékhov, Camus, Virginia Woolf e Wittgenstein. 
    O capítulo 2 começa com a seguinte pergunta:
    "Terá a Sandra Mozarovski sido amante do rei?"
    O rei de que fala é o rei Juan Carlos, de quem diz que os espanhóis pouco esperavam e que consideravam pouco inteligente. Conta a história da sua juventude, da morte do irmão, Alfonso, em resultado de uma bala disparada por Juan Carlos, quando ambos brincavam. A morte de Alfonso nunca foi julgada, apesar das dúvidas do pai, D. Juan, e do seu irmão, o infante D. Jaime, que exigiu que se procedesse a uma investigação judicial. O resto da história, que teve a conivência de Salazar, é conhecida: Alfonso foi enterrado à pressa e Juan Carlos entrou na Academia Militar de Saragoça, vindo depois a suceder a Franco e, como reconhece a autora, "mostrou-nos que não era o tonto que julgávamos, foi capaz de escapar à tutela dos generais e adquirir alguma legitimidade".
    A questão não é na realidade se Sandra foi amante do rei, que parece um dado adquirido, mas se ela foi assassinada ou se suicidou, conforme reza a versão oficial. Clara Usón, apesar de pôr em causa todos os pormenores do caso, e de mencionar autores que já aludiram ao provável homicídio, deixa a questão em aberto.
    No ultimo capítulo, a que dá o título Vício e Perdição, estabelece o paralelo entre ela e as personagens a que Sandra deu corpo, e fala da sua travessia pela toxicodependência e recuperação e das provações que as mães de ambas viveram.
    Pode parecer inconciliável dizer que li este livro com gula e que gosto da escrita desatada, mas aborreceu-me os saltos que dá, as ligações que faz e que nem sempre são fáceis de entender e as pontas que vai deixando soltas.
    Uma nota final para confessar que me irritou  o facto de ignorar Portugal - com exceção de Salazar - chegando mesmo a esquecer fronteiras: "(...) na Espanha de Franco tínhamos a impressão de habitar num tempo diferente do dos países vizinhos, o nosso relógio deixara de trabalhar num qualquer momento do pós-guerra, um ditador que não queria morrer, um mar e uma cordilheira separavam-nos de outras nações afortunadas cujos habitantes já viviam no futuro há décadas, tanta a inveja que sentíamos".

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