Os Bem-Aventurados, Luísa Beltrão (Editorial Presença)

     
    Terceiro volume desta tetralogia, Uma História Privada, iniciada com Os Pioneiros e Os Impetuosos. A estrutura deste volume, Os Bem-Aventurados, é distinta da dos anteriores: os capítulos não são dedicados a uma personagem que é introduzida pelas lembranças da Tia Graça. N' Os Bem-Aventurados vamos acompanhando as histórias de vários membros desta família, sobretudo mulheres, entre os anos trinta e sessenta do século XX, contudo, segundo a Autora, Luísa Beltrão, trata-se de um romance de ficção cujas personagens e enredos são fruto da sua imaginação.
    Percebe-se a opção de prosseguir com personagens fictícias. É sempre difícil contar a história e a vida daqueles que nos são próximos. Se não se esconde os defeitos e omite as tragédias e as derrotas, corre-se o risco de as pessoas se verem expostas na praça pública, contra a sua vontade. Mas contar vidas sem essas partes, aplana-as e torna-as desinteressantes.
    Apesar de se tratar de personagens de ficção, é sedutora a forma como se entrelaçam as histórias privadas e a história pública – política, social e económica – do país e do mundo. E é nesse entrelaçamento que temos uma fotografia da nossa sociedade, embora parcial. Sabíamo-lo já pelos volumes anteriores. Apesar de origens humildes, o dinheiro ganho no Brasil e em África e os casamentos celebrados depois, garantiram aos descendentes de Manuel Joaquim uma posição confortável na sociedade portuguesa, daí a designação de bem-aventurados. Mas se é aceitável a perspetiva unilateral ou parcial que nos é dada pelas personagens, já parece absurda ou pelo menos incompreensíveis certas afirmações da parte da narradora:

    «A 11 de abril desse ano de 1933, iniciava-se oficialmente em Portugal o Estado Corporativo com a entrada em vigor da nova Constituição. Aprovada por esmagadora maioria.»

    Ora, a Constituição foi plebiscitada e contou com cerca de 60% de voto a favor num universo de pouco mais de um milhão de votantes, não me parece, por isso, razoável, neste contexto, falar de uma maioria esmagadora.
    Mais à frente, a propósito do cinema feito em Portugal, aqui pela boca de uma personagem, inglesa, residente em Portugal é dito:

    «O estranho não é que tentem impor uma censura, o estranho é viverem como se ela não existisse. Não vejo uma repressão aberta aqui em Portugal, exactamente porque não há uma oposição aberta. (...) O vosso Salazar resolve as questões e a vós portugueses cabe unicamente obedecer.»

    E estas afirmações não são minimamente postas em causa ou contrariadas, pelo contrário, são justificadas.
    Mas a parte que mais me chocou, mais uma vez dita pela narradora, é a que relata o início da guerra colonial:

    «Centenas de pessoas eram selvaticamente mortas, homens, mulheres, crianças, brancos, negros, mestiços, apanhados desprevenidos nas suas roças ou nas pequenas aldeias, casas destruídas e incendiadas, uma ferocidade insuportável, a bela segurança construída desde há séculos estoirava num mar de sangue. Porquê? Nunca os portugueses haviam explorado os negros - colonizadores sim, mas de rosto humano. Porquê essa violência terrível?»

    E depois justifica a resposta dada pelos colonos: «a violência gerando a violência, a selvajaria anulando a civilização
    Trata-se de um romance e não de um livro de história, mas quando se traz acontecimentos marcantes como estes para as páginas de um romance, é preciso uma atenção redobrada ou, no mínimo, garantir uma perspetiva mais abrangente e não sectária ou tão desfasada da realidade.


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