Um Amor Feliz, David Mourão-Ferreira (Presença)

    Uma amiga disse-me que adorava este livro, que tinha lido há muitos anos, quando era aluna do David Mourão-Ferreira. Apesar de me lembrar bem do título, não me lembrava se o tinha lido ou não, mas depois desta conversa encontrei este exemplar à venda na feira dos alfarrabistas no Chiado. Um luxo: comprar livros extraordinários, que dificilmente se encontram nas livrarias, por poucos euros. 

    Não resisti e comecei a lê-lo no mesmo dia em que o comprei. Agora que o acabei confesso o meu fascínio por este amor feliz. Que também me irritou, divertiu, intrigou. Acima de tudo, é um romance extraordinariamente bem escrito e bem urdido. Um amor feliz é contado por um escultor, com perto de 60 anos, a uma amiga. Nele conta a paixão por uma mulher mais nova, que chama de Y, casada e com uma filha. Como escreve, esta mulher, muito mais nova que ele, traz-lhe uma luminosa plenitude à vida, numa altura em que ele já não esperava.

    E conta esta história de um amor feliz à amiga – com quem tem um pacto de auxílio mútuo – porque foi ela que lhe confiou a fórmula para a existência de um amor feliz:

    “Uma pessoa casada …. Só com outra pessoa casada. (…) E que de preferência uma delas seja mais velha. De preferência o homem.”

    Ele e a amiga encontram-se com frequência em reuniões de pediatras, dado que ambos são casados com pediatras, e falam sobre os seus amores felizes. Ele com Y, ela com um escritor, vinte e tantos anos mais velho do que ela. O escritor é obviamente uma referência ao Autor, que tanto irrita David, o escultor, apesar do muito que têm em comum. Li depois que David Mourão-Ferreira se inspirou em Francisco Simões e foi no atelier dele que recolheu informações para criar o espaço e o trabalho do escultor. No romance, com exceção de um fim de dia que passam juntos, mantêm distância um do outro, embora aparentem um jogo de espelhos, no qual ambos se refletem e se assemelham. Neste jogo de identidades, em que Fernão é o escritor e David o escultor, chegam a indicar um fado de Amália, como tendo sido escrito pelo primeiro, Fernão. O fado, com o título Libertação, é de facto da autoria de David Mourão-Ferreira. Mas o que mais me divertiu é a forma como critica o escritor, por quem a sua amiga está apaixonada, e dessa forma se critica a ele próprio:

    “E houve umas épocas, você desculpe, em que tive a sensação de que o seu amigo colaborava em demasiados jornais, fazia demasiadas conferências, participava em demasiados colóquios, em demasiadas mesas-redondas, e simultaneamente comparecia a demasiadas receções, demasiadamente dando a impressão de ser pau para toda a colher - não sei se como álibi ou como pretexto de o ser para toda a mulher. Seguiam-se uns períodos mais discretos, ou menos despudorados: lá voltávamos então a saudações nem sempre clandestinas. Depois do 25 de abril, com aquela sina de lhe terem cabido, como se diz, umas quantas responsabilidades políticas (quem as não teve?, quem as teve de maneira respeitável?), dificilmente lhe perdoei, com este meu temperamento de anarca, tê-lo visto para aí misturado, à ilharga de pavõezinhos mais recentes, com uma fraudulagem de falhados, de ambiciosos e de charlatães, que a gente já conhecia de ginjeira há quase trinta anos, que já desde essa altura não podia levar a sério, e que ele tinha mesmo obrigação de avaliar muito melhor do que eu.” (pg. 77)

    A forma como descreve uma receção de um diplomata para a qual é convidado, lembrou-me Um Amigo Comum, de Charles Dickens. Ambos designam as pessoas convidadas para o jantar pela função que desempenham ou que representam. Charles Dickens escreve o seguinte:

    “Num jantar que ofereceram estiveram presentes um Deputado, um Engenheiro, um Funcionário das Finanças, um Poema sobre Shakespeare, uma Injustiça e um Funcionário Público.”

    N’ Um Amor Feliz, os convidados são a Política e a Literatura, a Diplomacia e a Técnica, a Economia e o Foro, a Música e a Indústria, a Televisão, os Transportes, o Turismo, o Teatro, o Toureio

    Mas ao longo de Um Amor Feliz, a ironia e a graça convivem com a ternura e a capacidade de criar imagens extraordinárias:

    “(…) ao modo como sempre os meus olhos mergulham nos seus olhos, como sempre os meus braços apertam os seus ombros, como sempre entre os ombros e de encontro ao meu peito lhe reservo, num primeiro sinal de boas-vindas, a primeira enseada de ternura.”

     No meio destes amores, aparecem algumas imagens do nosso país nos anos 80, mas como algo distante (“Constou-me, também por essa altura, que mais uma vez o País se encontrava à beira da bancarrota.”)

    Confesso que ao longo do livro fui-me interrogando sobre qual seria o amor feliz, aquele que vivia com Y, a jovem mulher por quem está apaixonado, ou com a mulher com quem está casado, que descreve cruelmente, mas por quem é evidente a ternura e a cumplicidade.

    Mas para o saber é preciso ler Um Amor Feliz.

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