A Costa dos Murmúrios, Lídia Jorge (D. Quixote)

A Costa dos Murmúrios
    Em junho, julho, antes de partir de férias (ou de ficar de férias, porque mesmo ficando por casa, férias são férias) começo a sentir vontade de acumular livros, na convicção que terei pela frente muitos dias livres para ler. Com frequência, recomeço a trabalhar com menos livros lidos que desejaria, mas mantenho intocada essa expetativa.
    Na ausência da Feira do Livro nesses meses (espero que para o ano retome o calendário habitual) decidi aproveitar um passeio até Cascais para finalmente conhecer a livraria Déjà Lu. Infelizmente estava fechada, mas quase ao lado encontrei outra livraria de que nunca tinha ouvido falar: Indie, not a Bookshop. É uma pequena livraria, num espaço acolhedor. Apetece folhear os livros, escolher alguns e em vez de pagar e sair, ficar por ali a lê-los.
    Soube depois que abriu portas há menos de um ano, em plena pandemia. Para além de livros em várias línguas, tem também diversos objetos e jogos sobre livros e artes. Trouxe este romance da Lídia Jorge, que já vai na 17.ª edição, e tive a grata surpresa de saber que estava assinado pela Autora. Aliás, há uma estante à entrada da livraria com livros autografados por diversos autores.
    A Costa dos Murmúrios foi publicado em 1988 e é um romance sobre os últimos anos do regime colonial, através da vivência de uma jovem mulher, Evita, que vai para Moçambique para casar com o noivo, alferes, antes estudante de Matemática. Ao casamento segue-se o confronto com a realidade para a qual não estava preparada: Luís Alex, o marido, já não quer descobrir uma fórmula algébrica para resolver todas as equações e encontra-se fascinado pelo capitão Forza Leal, um déspota sádico, e pela sua mulher, Helena de Tróia:
 "Mas naturalmente que Helena de Tróia tinha de concitar o olhar. Naturalmente que o capitão reparou nos olhares que choviam como dardos. Naturalmente o capitão esbofeteou a mulher. Ainda mais naturalmente - porque tinha a ver com a dinâmica e a cinética - a mulher ficou encostada ao ferro da varanda que separava o Stella do Índico. Com a face esbofeteada, era naturalmente cada vez mais linda. Naturalmente uma lágrima caiu por um dos seus olhos, porque o outro estava coberto por uma das muitas madeixas de farto cabelo rubro. Naturalmente o marido se aproximou dela, e a puxou para si, e ela entregou a cara, a lágrima e o cabelo, encostando tudo isso ao ombro dele, naturalmente."
    Depois da festa de casamento, descobrem que alguns mainatos tinham morrido porque  encontraram bidons de álcool metílico que beberam pensando que era vinho. Estas mortes não causam consternação, apenas servem para confirmar a estupidez dos blacks, segundo o noivo e o capitão. Ao mesmo tempo, há uma chuva de gafanhotos que tudo cobre a camufla. 
    Quando os militares partem para uma operação militar, as mulheres permanecem no hotel Stella Maris ou sózinhas, em casas que foram abandonadas pelos seus proprietários, temerosos da guerra pela independência. É o caso de Helena de Tróia.
    A Costa dos Murmúrios tem uma primeira parte, com o título Os Gafanhotos, que é um conto que é depois desenvolvido na segunda parte, sem título, em que a noiva, agora viúva, é a narradora. Na segunda parte, Evita é Eva, aliás, repetidamente Eva Lopo esclarece que é (era) Evita. A dado passo, para provar que não inventou o que conta, chega a sugerir ao leitor que consulte o Arquivo Histórico Militar, indicando como o deverá fazer.
    Sendo obviamente um romance sobre os últimos anos do regime colonial e a guerra, senti que o cerne era sobre o que leva uma pessoa a fazer a guerra e como é ténue a distância entre o bem e o mal:
    "Mas ela conhecia o percurso de Luís Alex (o noivo), e o que tentava era achar finalmente o momento, o brilho, a palavra que desencadeava na pessoa o gosto de degolar. (...) Impelido por outra situação, talvez Einstein tivesse fuzilado gente em vez de descobrir tempos físicos e astrofísicos. (...) Entre o bem e o mal uma mortalha de papel de seda." (pg. 139 e segs)
    As mulheres que acompanham os maridos são também centrais na narrativa, apesar do lugar secundário que aparentemente ocupam, pela recusa aberta ou discreta de se portarem como eles exigem ou esperam delas:
    "Mas é verdade que disse  que as mães, filhas, sobrinhas, mulheres legítimas e ilegítimas, onde devem ficar, quando um homem sai, é obviamente na cama. Esse é o sítio delas. É para esse local que elas devem regressar quando acaso fogem de casa, é para aí que devem dirigir-se quando a vida se perturba e o mundo oscila, é aí que elas devem estar encolhidas, quando se regressa de longe. Deitadas, doentes, com os dois braços junto da cabeça ou do peito. Também se pecam, deve ser na cama e devem ser encontradas na cama, e aí devem ser mortas quando encontradas pecando." (pg. 254)
    Um romance impossivel de definir, mas que é um retrato de um regime e de uma época e se é dificil imaginar a transformação de um jovem estudante num militar, é também dificil imaginar o regresso à vida normal. Sem guerra.

    A Costa dos Murmúrios foi adaptado ao cinema por Margarida Cardoso. Infelizmente não o vi quando passou nos circuitos comerciais e não consegui agora vê-lo. Não é o primeiro filme português que desaparece sem deixar rasto. Como podemos recueprá-los e visioná-los, em casa ou, de preferência, num cinema?    
   

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