Mistida, Abdulai Sila, e Kriol Ten, Teresa Montenegro (Ku Si Mon Editora Lda)

      Quando viajo para outros país, por curta que seja a estadia, gosto de ler livros de autores desse país e, de preferência, cuja ação decorra lá. Como escrevi sobre o romance de Luís Cardoso, Para onde vão os gatos quando morrem?, há qualquer coisa de mágico quando lemos um livro no lugar em que a história acontece. Mesmo que não haja um local preciso em que decorra a ação, existem os sons, os cheiros, as pessoas e as cores, que nos ajudam a mergulhar na história ou histórias que nos são contadas.

    No final do ano passado fui à Guiné-Bissau. Já lá tinha estado há uns anos, também por um curto período de tempo. Então, como agora, não encontrei nos caminhos que percorri nenhuma livraria. Desta vez, a Sara, jovem leitora de português, falou-me de Abdulai Sila, de quem tinha vários livros e ofereceu-me este livro dele, Mistida. 

    Tinha a ideia que conseguia perceber algumas palavras e expressões crioulas, mas por mais que me esforçasse, não conseguia encontrar sentido para a palavra Mistida. Esta edição, a segunda, inclui o prefácio à primeira e à segunda edição, ambos assinados por Teresa Montenegro, e é neste último que explica a origem da palavra Mistida: presume-se que a palavra portuguesa, mister passou a misti  - com o significado de precisar, ter necessidade de - de que derivou mistida, que é o próprio desejo. "Uma mistida é uma coisa vulgar e extremamente terrena (...) No quotidiano urbano, a mistida é hoje sobretudo escrava da sobrevivência (... ) Puxada ao limite, numa outra aceção, mistida serve de eufemismo para designar assuntos também mais ou menos escuros." Quase todos os contos acabam com uma personagem a dizer que há uma grande mistida a safar.

    O autor na contracapa escreve que mais do que propriamente capítulos de um romance, os dez episódios que compõem Mistida evocam uma peça de jazz...mas eu não os entendi como episódios e muito menos como capítulos. Li-os como contos com alguma circularidade nas histórias e personagens. Mistida é dedicado ao Pai e tem uma epígrafe inicial "Si fere ala, fere bonde ko fere?" que significa "Se não há saída, uma má saída é saída?" o que é, de alguma forma, a chave para alguns dos contos.

    Todos os contos têm um pequeno texto inicial seguido de um título e uma epígrafe, extraída de livros ou canções, duas  escritas em inglês (excertos de One Love, de Bob Marley e House of exile, de Jimmy Cliff). Li depois que das restantes epigrafes, uma está escrita em fula (in Safando a Mistida: deslizamentos entre trilogia, romance e palavra, de Juliana Cristina Salvadori) e as restantes em crioulo.

  Muita coisa cabe nestes contos, a guerra, pela independência e a guerra civil, a prisão, a memória, a pobreza, a indiferença, a corrupção e a falta de esperança:

     "(...) era preciso dizer claramente aos que andavam a arrastar a terra para a miséria que não foi para isso que tinham lutado tantos anos e feito tantos sacrifícios para pôr os tugas fora." (pg. 41)

    "- Mas o que é que está a acontecer neste país?

    A esta pergunta ninguém jamais soube responder. (...) 

    «Somos de Bretton Woods... Ou pagas a dívida rápido ou então daremos cabo de ti, negro miserável...»" (Sem Sombra de Dúvida, pg. 66)

     Ou ainda:
    "Então há uma coisa que se ganhe honestamente nesta terra hoje em dia? (...)
    As pessoas  viam com os seus olhos que alguém estava a enganá-las e não reagiam. Não reclamavam, não protestavam, não faziam nada. Deixavam as coisas, tal e qual, sem mexer um dedo." (Mama Sabel, pgs. 87 e 91)
     "Agora só se pensa a curto prazo. E era por isso que na terra havia mais oposições que posições." (pg 141)

    A escrita é poética mas realista, nunca se desliga da realidade, nem sequer da atualidade.

    De todos os contos, o que mais me impressionou foi o 3, Sem Sombra de Dúvida. O guarda de uma casa é perseguido pela sua própria sombra e depois pelo pesadelo com o soldado branco que tinha sido a sua primeira vítima:

    "Mostrou-lhe a enorme ferida que tinha no peito sobre o coração e perguntou-lhe porque é que tinha disparado sobre ele. (...) Tentou explicar-lhe várias vezes que a culpa não era sua. Ele não quis matar ninguém, a guerra é que obrigava...Mas o soldado não queria entender...Aparecia-lhe com o coração despedaçado na mão e perguntava-lhe se não podia ter apontado a arma para um outro sítio, por que não disparara sobre outra pessoa...." (pg.66)

    Depois de ter lido este conto, lembrei-me do livro As Benevolentes, de Jonathan Littell - que, confesso, não consegui acabar de ler devido à extrema violência da narração -, mas em que  é dito que, ao lado do direito à vida, que consta da Declaração Universal dos Direitos Humanos, deveria constar o direito a não matar.

    Dez contos que não conseguiria definir ou enquadrar em qualquer categoria, mas em que ressalta, paralelamente à beleza formal da escrita, a descrição ou a história recente de um povo. Espero ter oportunidade de ler outros livros de Abdulai Sila.


    Na primeira semana de janeiro, recebi em minha casa uma encomenda, enviada pela Sara. Dentro, encontrei este livro lindíssimo, Kriol Ten, de Teresa Montenegro. Tenho-me entretido a tentar repetir e fixar algumas expressões e aqui fica o meu compromisso com a Sara, de tentar pápia diritu Kriol.

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