Novas Cartas Portuguesas, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa (Coleção Serpente)

    As Novas Cartas Portuguesas, com que o Público inicia a Coleção Censura no Feminino, traz na primeira página o parecer da censura que levou a que o livro fosse retirado de circulação e que concluía da seguinte forma: "Sou de parecer que se proíba a circulação no País do livro em referência, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para efeitos de instrução do processo-crime."
    A razão para tal resultava, segundo o parecer, do facto de preconizar a emancipação da mulher em todos os seus aspetos e por algumas das suas passagens "serem francamente chocantes por imorais, constituindo uma ofensa aos costumes e à moral vigente no País."
    
    As Autoras, que ficaram conhecidas como as Três Marias, foram alvo de um processo judicial. A cobertura do julgamento foi feita por vários órgãos de comunicação social estrangeiros e, em vários países, movimentos feministas organizaram manifestações de apoio às Três Marias. O julgamento teve início em outubro de 1973 e as Autoras não foram condenadas porque entretanto ocorreu o 25 de Abril de 1974.
    Já o tinha lido há muitos anos, após ler As Cartas Portuguesas. Pensei agora que iria encontrar textos e temas datados e ultrapassados. Afinal já passaram mais de 50 anos desde a sua edição. Mais de meio século desde que foram escritas. Mas, para minha surpresa, são, na sua maior parte, de uma enorme atualidade. As Novas Cartas Portuguesas, escritas a três mãos, entre março e novembro de 1971, compõem-se de textos em prosa e poemas, e são povoadas não só por Mariana e pelo cavaleiro de Chamilly, mas também por familiares e amigos de Mariana e por outras personagens, de ficção ou reais. Muito dos textos são cartas, incluindo do Cavaleiro de Chamilly a D. Mariana de Alcoforado. Nelas, bem como nos restantes textos, falam de tudo o que importa(va) à mulher e de que era interdito falar: a masturbação, o prazer feminino, a dependência do homem, a subalternização da mulher. O ódio:
    "Forçoso te foi confessar que o odiaste. «Que cavaleiro és tu que assim me deixas sem montada, que cavaleiro, que amante, que filho, que pai, que tudo.» Que tudo de posse é macho, Mariana, e ainda hoje." (pg. 146)
    "Me torno pois a vossa carta, M. Antoine de Chamilly, com a vingança de minha tia posta no meu coração. A vós, já morto (...) e a todos os que virão, ainda em muitos séculos, defender vossas razões admiráveis ou vossas desculpas benevolentes, respondo eu, Mariana sobrinha de Mariana, e não estranheis ser minha a resposta pois que, por vossas mãos, vós todos nela matásteis o querer e o dever responder-vos." (pg. 155)
    "Definitivamente proscrita só eu, que só a mulher é irredimível na sua desonra, não por ser sua desonra, mulher em si tão pouco conta, mas por estar escrito na lei que a sua desonra é a dos machos que deviam tê-la e não souberam guardá-la, consentindo assim numa ameaça à santa propriedade privada, desonra que só é lavável com o sangue da mulher rebelde." (pg. 157) 
    "Se os homens constituíssem famílias e linhagens para se garantirem descendência de nomes e de propriedades, não será lógico que as mulheres utilizem sua descendência sem nome nem propriedade para perpetuar o escândalo e o inaceitável?" (pg. 176) 
    "Se a mulher se revolta contra o homem nada fica intacto; para a mulher, o chefe, a política, o negócio, a propriedade, o lugar, o prazer (bem viciado), só existem através do homem. O guerreiro tem o seu repouso; por enquanto nada há onde a mulher possa firmar-se e compensar-se das suas lutas. Chegará o dia? Até lá fica sem sentido a vida de mulheres como eu." (pg. 182)
    "Que infelizes, minha amiga, ambas amarradas por leis tão desumanas que tornam a mulher pertença sempre de alguém, domínio, terra onde se pernoita e semeia. - Vingança é tua esterilidade, desforra; por ela te negas a ser utilizada: mãe te tornando de homem ou mulher gerados por marido que odeias." (pg, 185)

    E falam também na guerra colonial, no aborto ("que sangue de aborto não é sangue vertido pelo rei, é sempre vertido contra vós todos." (pg. 158), na entrada da mulher no mercado de trabalho e em muitos outros assuntos que permanecem surpreendentemente atuais. Até nos países de que falam - Afeganistão e Arábia Saudita - mencionando o apedrejamento das mulheres adúlteras. 
 
    Imagino-as a escrever separadamente, a lerem os textos, a retocá-los, a reeescreverem. Será que depois conseguiam identificar a autoria de cada texto? Adivinho-as a conceberem o projeto, a escreverem os primeiros textos cheias de vontade e expetativa e depois, ao longo do ano, a cansarem-se, a zangarem-se até. Fazem eco disso nas páginas finais: "Ah, como vocês me foram insuportáveis, por vezes, ao longo destas páginas de começo, e eu também, com a minha retórica pedante..." (pg. 361)
    
    Já o escrevi: surpreendeu-me a atualidade de muitas das questões. Progredimos assim tão pouco? 
    E parece-me admirável a coragem das Três Marias ao escreverem e editarem estes textos em 1971, conscientes que estariam que o livro seria censurado e elas julgadas. O 25 de Abril impediu que fossem condenadas.  Espero que as novas gerações continuem a ler as Cartas Portuguesas e as Novas Cartas Portuguesas.

A Revista Visão História dedica a edição de fevereiro/março 2023 a 55 Mulheres Portuguesas que fizeram história, nelas incluindo Maria Teresa Horta, que é entrevistada por Sara Belo Luís, abordando naturalmente as Novas Cartas Portuguesas e como tudo começou:
    "Todas as semanas almoçava com a Isabel (Barreno) e com a Fátima (que assinava com o nome Maria Velho da Costa), que era como lhe chamávamos. E houve um dia que cheguei lá num estado comatoso, tinham-me batido e eu estava toda desfeita. E vai daí, a Fátima é que se lembrou de sermos as três a escrever. No almoço seguinte, a Isabel, que inicialmente até tinha ficado aborrecida com a ideia porque tinha começado a escrever  A Morte da Mãe e não queria interromper, já tinha o primeiro texto para nos dar a ler.

    Quando começámos a escrever, foi do princípio ao fim. Foi uma coisa muito bonita, foi das coisas mais belas da minha vida. Porque não é só literatura. Nas Novas Cartas Portuguesas há uma conivência muito grande, um trabalho de luta. Isto não é apenas a obra literária. É um trabalho de luta - e nós conseguimos fazer desse trabalho de luta uma obra literária."

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