Ainda estou aqui, Marcelo Rubens Paiva (D. Quixote)

 

  

    É pouco comum ver um filme e de seguida ler o livro que lhe deu origem. Sinto que o filme esgota o livro e por isso não sinto vontade de o ler.  Já o contrário não é verdade. Com frequência vejo filmes já tendo lido os livros nos quais se basearam. Sinto curiosidade sobre a forma como as palavras escritas passam para o écran, em especial os pensamentos, os sonhos ou os desejos das personagens.

    Mas nalguns casos o filme abre as portas ao livro. Aconteceu-me com A zona de interesse. Depois de ter visto o filme, fiquei com curiosidade de ler o livro, da autoria de Martin Amis, e o mesmo sucedeu com o filme Ainda estou aqui. Nestes dois casos, depois de ler os livros em que se basearam os filmes, sinto que são histórias quase distintas ou como se o filme nos contasse apenas um episódio de uma história bastante mais complexa e longa.

    O filme Ainda estou aqui inquietou-me, impressionou-me, arrepiou-me. Conheço mal a história brasileira, não tinha sequer noção que a ditadura militar tinha durado 21 anos, entre 1964 e 1985. E que tinha atingido tais níveis de violência. Sabia que por altura do 25 de Abril o Brasil vivia em ditadura. Recordo-me bem da versão inicial da canção Tanto mar, de Chico Buarque, dedicada a Portugal, logo após o 25 de Abril:

Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo pra mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
….

    Pelo impacto do filme, receei que o livro fosse uma desilusão, mas decidi-me a comprá-lo aquando de uma sessão do Café com letras, organizado pela Biblioteca Municipal de Oeiras, no passado dia 8 de julho. Nela estiveram presentes Marcelo Rubens Paiva e Bruna Lombardi. Gostei muito de o ouvir falar. Não falou especialmente sobre o livro ou sobre a sua história pessoal ou familiar, mas sim sobre o que designou do altruísmo. Contou como estando dependente de uma cadeira de rodas e acontecendo-lhe com frequência cair, as pessoas acorrem para o ajudar. E isso mesmo tinha-lhe acontecido há poucos dias já entre nós.

       Suavizou o receio que os presentes sentiam nas mudanças havidas no país. Deixou uma mensagem de esperança: as pessoas são na sua maioria altruístas. E surpreendi-me pela capacidade que mantinha de acreditar nas pessoas apesar de tudo o que tinha vivido. Lembrei-me da história do guarda que falou com a mãe quando estava presa e que ela contava repetidamente:

    “Num outro dia, também de surpresa, ela acordou e lá estava ele, o soldado, encostado na cela. Parecia atordoado. Infeliz. Como se quisesse dizer algo. Como se fosse explodir. Assustado. Olhava indignado para a minha mãe. Então ele disse as únicas palavras que faziam algum sentido:

    - Olha, queria que a senhora soubesse que eu não concordo. Só estou cumprindo ordens. Eu não concordo com isso. Isso vai acabar. Um dia, vai acabar. O que estão fazendo aqui não está certo. E quando acabar, e nos reencontrarmos um dia, em outras condições, espero que a senhora conte a todos que eu não concordava, que só cumpria ordens e que torcia para isso acabar logo.

    O desabafo trouxe um alívio instantâneo. Como se um raio de sol atingisse seu rosto, por uma fresta milagrosa da masmorra. O soldado fez um bem incrível a ela. Mostrou que o mundo não estava do avesso para sempre. Que o que ela vivia, sim, não fazia o menor sentido. Que existiam pessoas de dentro que não concordavam. Que nem toda a estrutura estava ao serviço da loucura. Tinha humanidade naquele terror. Havia aliados da sanidade. E ela nunca mais se esqueceu dessa testemunha anónima do caos. Repetia para nós sempre a mesma história, em detalhes, com as mesmas palavras.” (pgs. 132 e 133)

   Mas se o filme se centra na história da procura de Rubens Paiva e depois na obtenção da declaração da sua morte e no desejo de levar à justiça aqueles que o torturaram e mataram, o livro é sobretudo sobre a mãe, Eunice Paiva. O título, Ainda estou aqui, é uma frase da mãe, doente com Alzheimer, mas em que as memórias da época ainda a conseguem despertar.

    E reconheci-me na forma como ele fala da doença da mãe e como a doença impacta na vida dos filhos. Como se inverte a relação até então existente. E como vamos lidando com a sua morte em vida. Como ele reconhece, a dada altura começamos a falar como se a pessoa já não estivesse viva:

    “Percebeu que conjuguei no passado, apesar de ela ainda estar viva enquanto escrevo, morando num prédio vizinho ao meu, provavelmente sentadinha vendo TV com alguma de suas cuidadoras que ela adora e com quem se diverte? É uma confusão recorrente de quem tem um parente com Alzheimer: falar dele no passado.”

    Um livro extraordinário, pela memória que perpetua, mas também pela esperança que transmite.

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