O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação, Luís Cardoso (sextante editora)


Luís Cardoso "@ Clube de Leituras"
     Confesso que não sabia quem era Pigafetta, mas o título induziu-me a procurar e fiquei a saber que era um nobre nascido em Vicenza, no final do século XV. Quando soube da expedição de Fernão de Magalhães, que partia à procura das ilhas Molucas, ofereceu-se para participar, e viajou desempenhando o papel de intérprete, cronista e cartógrafo. Três anos depois, apenas um navio regressou da que foi a primeira viagem de circum-navegação à volta do mundo. Ao contrário de Magalhães, Pigafetta sobreviveu, tendo escrito relatos sobre a viagem, o que o celebrizou até aos dias de hoje.
    Luís Cardoso parte da ideia de que Pigafetta ficou retido em Timor, não tendo concluído a sua viagem de circum-navegação ao mundo que será mais tarde concluída, ou pelo menos desejada, por um timorense, albino, transexual, que usa o seu nome. Como se de alguma forma esta alteração da história de Pigafetta, ali parado, sem conseguir concluir a sua viagem, nos desse a ideia daquele povo, daquele país, aprisionado numa ilha, à espera, desde que ali aportaram, para concluir a sua viagem.
    Quando comecei a ler o livro O Ano em que Pigafetta Completou a Circum-Navegação, senti-me um pouco perdida com as pessoas, os nomes, as suas mutações e disfarces, contudo, compreendi que isto fez parte da vida dos timorenses durante a ocupação dos bapak (indonésios). Mas a história não fica apenas por esse período, vai anos antes, à ocupação pelos japoneses, durante a segunda guerra mundial, e às suas colunas negras, ao período colonial português, à guerra civil que se seguiu à declaração de independência. E sobre este período não culpa nem desculpa ninguém:

    «Que, para ela, (o referendo) devia ter ocorrido nos finais da década de setenta, conforme estava previsto pelos malaes (estrangeiro/português). Pena que os timorenses se tivessem precipitado todos. Uns porque tinham muita pressa e outros porque não tinham nenhuma. Entre a ânsia de alguns e a hesitação de outros, entrou o bapak [...]»

    Reitera, aliás, a ideia de que não se justifica julgar ninguém por este período:

    «Ninguém estava interessado em voltar a escavar o que o tempo se encarregou de enterrar.» (pg. 161) 

    «Achava que não era o momento oportuno para se pedir contas sobre o que os timorenses fizeram uns aos outros. O que os bapaks implantaram durante estes anos de terror e de medo ultrapassava de longe qualquer maldade que porventura os homens tivessem feito à face da Terra.» (pg. 187).   


    E a história é feita de várias histórias, quase todas contadas e protagonizadas por mulheres que procuram o filho ou aguardam os maridos ou companheiros que as deixaram para se juntarem à resistência, ou partiram para o outro lado do mar - tasi-balu. Várias gerações de mulheres, como Aurora, avó de Carolina, que se casou ainda menina com o major (na altura ainda era tenente) e que guarda uma fotografia dessa altura, apenas com um pano atado à cintura, porque a forçaram a posar assim.

    «[as nativas] Ficam furiosas quando invadem as suas privacidades. Tapam-se na presença de estranhos. Quando não podem, tapam os olhos com as mãos. Para não verem os olhos de quem as vê. Para não se verem como ao espelho quando são alvo de olhares.»

    E no meio há a saudade da mãe ou da ama, como já transparecia no outro livro que li do mesmo autor, Para Onde Vão os Gatos Quando Morrem?:

    «Não me lembro das mãos da minha mãe, é triste não me lembrar disso. Nem sequer do seu cheiro, é triste não me lembrar disso. Depois de me dar à luz foi-se embora, é triste lembrar-me disso. Fartou-se da ausência do meu pai,  é triste lembrar-me disso. Foi atrás de um tocador de rabeca que prometeu que nunca havia de a deixar só e passado um ano ficou ainda mais só a olhar para o mar.» (pg. 103)

     Apesar das várias histórias pessoais que se cruzam ou por causa delas, O Ano em que Pigafetta Completou a Circum-Navegação é, sobretudo, um relato da luta dos timorenses pela sua independência, pela conclusão da sua viagem, e uma homenagem às mulheres e aos homens que de diferentes formas contribuíram para este desfecho: «Pergunto quantos dos timorenses que embarcaram nessa aventura de construir um país independente acreditavam realmente num final feliz.»

    Uma palavra final para a escolha do narrador que, surpreendentemente, é a sandália do pé esquerdo de Carolina. O pai dela traz as sandálias para oferecer à filha quando regressa da Áustria, num encontro de reconciliação entre timorenses promovido pela ONU. E as sandálias são comparadas às mulheres, que as cobiçam e com quem se confundem: «Depois adormeço. Esqueço-me. Amanhã volto a ser uma sandália. A do lado esquerdo, onde bate o coração.»

    Um livro impossível de esquecer.

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