Misericórdia, Lídia Jorge (D. Quixote)

   Ao contrário do que é habitual, não escrevi sobre este romance quando acabei de o ler. Não o fiz por ter, entretanto, ido de férias ou começado a ler outros livros, mas porque precisava de o digerir.

    Misericórdia, para além da qualidade da escrita, confronta-nos com as nossas opções, a nossa realidade, os nossos medos. Ao lê-lo lembrei-me das mãos da minha avó, agarradas às minhas, enquanto me pedia que não permitisse que um dia a pusessem num lar. Morreu em casa, e gosto de pensar que todos os dias a sentavam no sofá, na sala, junto à janela, a apanhar um pouco de sol e a ver quem passava na rua. Um direito que devia assistir a todos, mas que a poucos é permitido.

    Depois de ter lido Misericórdia, ouvi a Autora, Lídia Jorge, explicar o sucesso do livro pelo tema tratado, que definiu como os «marginais da idade que não têm lugar no mundo (…) e que são vítimas do nosso sistema neoliberal económico (…) não encontrámos uma forma mais humana de tratar os idosos».

   Misericórdia conta-nos o dia a dia num lar, pela voz de uma idosa, Maria Alberta, que não cabe nos lugares comuns ou certos em que habitualmente encaixamos os residentes nos lares. Oscila entre perdas de memória, conselhos à filha, preocupações com os cuidadores e as amigas e o medo da noite. O seu universo é constituído pelos cuidadores e responsáveis do lar, pela filha e pelo genro, e, sobretudo, pelos outros residentes, amigos a prazo, que a qualquer momento desaparecem numa maca e são rapidamente substituídos por outros idosos. Curioso é o facto de em pequena escala se verificarem no seu interior e nas vivências dos residentes, situações e problemas idênticos aos registadas no exterior, como atos discriminatórios, paixões, coscuvilhice…      Enquanto lia, interrogava-me se a Autora teria imaginado tudo isto ou teria conhecido estas histórias através da sua mãe, a quem dedica o livro, por ter sido ela, Maria dos Remédios, que lhe pediu que escrevesse esta história. Dedica-o também a Luís Sepúlveda, pois apesar de não se terem conhecido «estão unidos no tempo das estrelas e cruzam-se no interior destas páginas».

    A relação com os cuidadores, na sua maioria cuidadoras, de diversas nacionalidades, é determinante no quotidiano dos residentes. E há os indiferentes, mas também há – e são a maioria – os cuidadores excecionais. Aqueles que substituem, pela presença e dedicação, os filhos e outros familiares. E se a vida no lar tem as suas idiossincrasias e dificuldades, tudo se agrava com a chegada da pandemia. A descrição deste período é quase arrepiante.

    Não resisto a roubar alguns parágrafos dos pensamentos e reflexões de Maria Alberta:

    «Eu sei que a felicidade é um bem muito escasso. Devemos guardá-la sobre o peito quando nos toca por perto, encher com ela todas as algibeiras da alma, para servir de escudo quando o seu oposto acontece, por isso não me incomodavam por aí além, estava preparada. As raparigas alojaram-me na mesa, empurraram-me a cadeira de modo a que o meu peito ficasse rente à toalha, pariram, não chegaram a dizer-me bom dia. Mas eu levantei os olhos e senti por perto uma boa fonte de felicidade – a sala estava repleta, pelas paredes havia enfeites de Páscoa e as minhas companheiras de mesa saudaram-me. Entreguei todo o meu contentamento a elas.» (pg. 24)

    «Não é possível dispor de um objeto secreto onde tudo é visto e revisto, pesquisado e inventariado pelos olhos dos outros, pois aqui onde me encontro nenhum canto é meu, nenhum objeto me pertence, até mesmo o meu corpo não é mais um recanto privado da minha alma como antes era. Só os meus pensamentos me pertencem, só esses não são vigiados, e ainda assim, há quem tente adivinhar os motivos por que falo ou por que estou calada.» (pg. 70).

    Uma leitura obrigatória.

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