As Três Últimas Novelas, Thomas Mann (Livros do Brasil)

As três últimas novelas
    Três novelas de Thomas Mann, cuja leitura é sempre um prazer. Confesso que várias vezes dei por mim a rir enquanto lia a primeira novela As cabeças trocadas
    Ao contrário do que se passa com as outras duas novelas, esta tem um subtítulo, Uma lenda indiana. Não conheço a lenda original, nem sei se a novela corresponde integralmente à lenda, mas o autor teve necessidade de explicar partes que ele próprio deve ter achado pouco exequíveis, como o suicídio por decapitação, e fá-lo em diálogo com o leitor:
   «Dito e feito – narrado sem demoras e executado rapidamente também. E, contudo, o narrador acalenta apenas um e só desejo: que o leitor não tome as suas palavras com indiferença irrefletida e não considere o narrado como algo habitual e natural, somente porque surge em tantas narrativas e nelas parece ser usual que as pessoas cortem a sua própria cabeça. O caso particular nunca é vulgar: não há nada mais vulgar na nossa ideia e linguagem que o nascimento e a morte; assiste, porém, a um parto ou a uma morte e pergunta a ti mesmo e à parturiente ou ao moribundo se o vê como uma coisa vulgar!» (pg. 44)

   E toda a novela é pontuada pela ironia, como quando Sita explica à deusa Kali que os dois se suicidaram por causa dela e esta lhe responde:

   «- Que disparate! Só uma mulher se poderia realmente lembrar de semelhante parvoíce!»
  
    A lenda só por si é fascinante e suscita questões reais, embora aqui surjam amplificadas pela ficção: a separação entre o corpo e a cabeça, o desejo ou a escolha de um ou de outra – o físico versus o intelecto - e a inveja que reciprocamente causam e sentem.
   E o melhor é que não há escolha certa.
   A segunda novela, A Lei, conta a história de Moisés e dos 10 mandamentos que conheço por ter aprendido na juventude. Imagino, contudo, que pormenores com que Thomas Mann polvilhou a novela não constem da Bíblia, mais lembrando um episódio dos Monty Python, como quando Moisés assiste em cima de um monte à luta com os amalecitas, sendo que de cada vez que baixa os braços havia «derramamento de sangue e grandes apuros no campo de batalha», pelo que Aarão e Miriam seguravam-lhe as mãos e sustinham-no pelas axilas. Depois da batalha, Moisés vai disseminando regras e preceitos sobre alimentos, higiene e mesmo sobre o prazer, para assombro de todos e quando se queixa a Deus do povo, pedindo que o dispense da missão, este diz-lhe:

    «Para além de tudo o mais, sei que os teus queixumes e a súplica para que te liberte desta missão não passam de presunção e pedantismo da tua parte.»
    
    No posfácio, Gilda Lopes Encarnação, que traduz as novelas (e que é também a tradutora de Os Buddenbrook) considera que A Lei, tendo sido publicada em 1944, é uma alegoria da libertação face ao Terror, apesar de Moisés ser um homem autoritário e atormentado. Apesar disso, as maldições finais parecem dirigidas ao regime nazi, ou pelo menos foi assim que as li.
   A terceira e última novela, A Mulher Atraiçoada, é de índole distinta e aqui o autor não recorreu como nas outras à ironia. Há quem a leia como o contraponto de A Morte em Veneza. Em ambas há uma paixão por alguém muito mais novo. Um interdito social nos dois casos: n’A Morte em Veneza porque se trata de uma paixão homossexual, n’A Mulher Atraiçoada porque se trata de uma paixão por um jovem que tinha idade para ser filho da mulher, Rosalie.
    Não é o jovem que a atraiçoa, é o corpo dela que, ironicamente, a faz crer que rejuvenesceu para depois lhe destruir toda a esperança. Uma belíssima história de amor que ela vai partilhando com a filha, uma jovem sensata e racional. Não resisti a roubar um pequeno excerto de uma conversa entre as duas:

     «(A filha) Os teus olhos são informados, clara e objectivamente, pela natureza e pela vida, não pela leitura de livros, que tu, aliás, nunca cultivaste em grande medida. Até hoje nunca precisaste de palavras, dessas inventadas pelos poetas, doentias e mórbidas.[...]
     »(A mãe) Se os poetas usam essas palavras é porque precisam mesmo delas, porque elas condensam os sentimentos e as vivências que eles querem expressar, tal como sucede comigo, apesar de tu achares que essa linguagem não tem a ver comigo. Isso não é verdade: as palavras pertencem a quem delas tem necessidade e a ninguém devem intimidar, já que brotam da alma de cada um de nós.»

   Três novelas extraordinárias.

Comentários

Os mais lidos

O Sétimo Juramento, Paulina Chiziane (Sociedade Editorial Ndjira)

Niketche, Paulina Chiziane (Caminho)

Os Bem-Aventurados, Luísa Beltrão (Editorial Presença)