Não saí da minha noite, Annie Ernaux (Livros do Brasil)

Não saí da minha noite
    Durante anos procurei livros sobre a velhice (e a demência) e a morte da mãe e confrontei-me com o seu reduzido número, ao contrário dos livros sobre a morte do pai. Li agora dois, excecionais, publicados recentemente sobre este tema: Misericórdia, de Lídia Jorge, e Não saí da minha noite. Ambos escritos por mulheres. Escritoras. Interrogo-me se os escritores, homens, escreverão mais sobre a morte do pai e as escritoras sobre a morte da mãe. Ultrapassando questões de afetos e ligações, tratar-se-á de uma questão de identificação? Numa entrevista – que li algures – sobre este livro (que me recuso a catalogar porque não consigo fazê-lo, nem me parece que importe), Annie Ernaux refere que tem consciência de que «a sua mãe representa “o tempo” e que de alguma maneira ela a “empurra” a ela, a sua filha, para a “morte”».

     Surpreendeu-me a questão da noite, presente neste livro e em Misericórdia:

     «Aqui onde me encontro, mesmo em tempo de Primavera, quando os dias costumam ser do tamanho das noites, a noite é sempre mais longa que o dia. Sabendo disso, é precisamente a meio da noite que a noite vem ter comigo, dirigindo-me perguntas inimagináveis como se fosse aquele gato pardo, muito antigo, que se chamava esfinge.»

     «Não saí da minha noite» foi a última frase que a mãe de Annie Ernaux escreveu.

     O livro, que li numa tarde, decorre entre dezembro de 1983 e abril de 1986. Durante uma vaga de calor, a mãe sente-se mal e é hospitalizada. Depois de recuperar fisicamente, como tinha falhas de memória, a filha leva-a para sua casa, convicta que a companhia dela e dos netos lhe permitiria recuperar a memória e a normalidade, mas não é isso que acontece. Algum tempo depois, o médico «menciona» a doença de Alzheimer e dada a sua prostração é de novo hospitalizada no serviço de geriatria. Virá a sair brevemente para um lar, mas regressará ao hospital onde morrerá de uma embolia.
    «Não saí da minha noite» é escrito sob a forma de pequenos retalhos, compostos de memórias que nos confrontam com a velhice, a demência e a perda. Apesar de a Autora referir que quer que estas páginas sejam lidas «apenas como o resíduo de uma dor» e que não sejam vistas como um testemunho sobre a estadia num lar da terceira idade e muito menos como uma denúncia, há partes muito chocantes e que nos interpelam sobre a vida dos velhos nestes lares. E que também a levam a questionar sobre a longevidade das pessoas idosas, dementes e dependentes: «Digo-me bruscamente que, pelo rumo que o mundo está a levar, daqui a vinte anos, ou cinquenta, não manteremos vivos seres como a minha mãe. Não sei avaliar tal eventualidade, se é legítima ou não.»

     Identifiquei-me muito com a Autora, enquanto filha que assiste, impotente, à perda sucessiva das capacidades da mãe, à sua demência, incapacidade e dependência. E que depois sofre terrivelmente com a perda da mãe.

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